Prazer, doutor Central
A Luta

Prazer, doutor Central

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20/12/2018 00:00

O médico chega no consultório no início da manhã. Os prontuários já estão preparados para os atendimentos do dia. A cena poderia descrever a rotina de qualquer profissional da área, não fosse por um detalhe: o local de atendimento é o ambulatório do Presídio Central de Porto Alegre. Foi ali, em um espaço que poucos ousariam frequentar por vontade própria, que o traumatologista Clodoaldo Ortega Pinilla construiu sua trajetória e atuou ao longo de 37 anos.

Nascido no Panamá, Ortega Pinilla chegou ao Brasil aos 18 anos para cursar Medicina na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Hoje, aos 70 e aposentado do Central, com um português que pouco revela de sua origem, explica a escolha incomum pelo local de trabalho. “Eles estão lá porque cometeram algum delito, sofreram um trauma, seja social ou não. Devem pagar pelos seus erros, é claro, mas também precisam de atendimento. O Estado é responsável por eles. Eu tinha que fazer a minha parte como médico”.

Respeito define

Diferente do que é comum imaginar, o traumatologista destaca que sempre houve estrutura para trabalhar dentro do presídio. A partir do convênio com o Hospital Vila Nova, inclusive, passou a existir uma ala especial para atender os apenados clínicos e cirúrgicos, o que trouxe, garante ele, mais estabilidade ao sistema penitenciário. Nem por isso, é claro, a rotina sempre foi das mais tranquilas.

Em mais um dia de trabalho, no ano de 1987, foi avisado por dois detentos: devia deixar o consultório imediatamente. Ele era o único traumatologista entre um grupo de 18 médicos e a advertência não parecia fazer sentido. Afinal, a lista de pacientes que precisavam de atendimento ainda estava longe de terminar.

Apesar do questionamento, não relutou e foi embora. Escutando o rádio horas mais tarde, Ortega Pinilla soube que havia iniciado a primeira rebelião do Central. Durante a ação, uma assistente social, uma freira e diversos enfermeiros foram feitos reféns. Ele, de outra forma, foi poupado pelos presos ao receber o aviso de que precisava sair. O motivo? O respeito e o carinho conquistado entre os detentos. Os apelidos acumulados ao

longo dos anos reforçam os sentimentos. Doutor Central e até mesmo Pedra 90 - uma alusão à bola mais valiosa do bingo – são alguns deles. 

A proximidade vinha do contato diário. O traumatologista relembra que, quando chegou para trabalhar no presídio, não havia técnicos de enfermagem. Quem ajudava o grupo de 18 médicos, das mais diversas especialidades, eram os próprios presos. “Atendíamos dentro de um pavilhão médico hospitalar que possuía uma ala clínica e uma cirúrgica, uma sala de gesso e uma de curativos”, detalhes. A população carcerária na época reunia cerca de dois mil apenados e uma capacidade para 1.905 pessoas. Hoje, o local já abriga número próximo aos 4.400 apenados.

O respeito conquistado no Central também aparecia quando o médico atuava no Hospital de Pronto Socorro, na Capital. “Acontecia de eu estar no plantão e os apenados levarem seus parentes até lá, para que os atendesse”, conta.

Central em números


Se na época da primeira rebelião o presídio já contava com um número maior de  presos do que a sua capacidade, hoje o problema se multiplicou: são cerca de 4,4 mil apenados para a mesma capacidade. Inclusive, a população carcerária é superior à quantidade de habitantes que residem em 42% dos municípios gaúchos. Uma realidade que exigiu adaptações. Hoje, a divisão por celas foi substituída por galerias, em que os colchonetes se espalham pelo chão.

Desafios do cárcere

Controlar a proliferação de doenças em um espaço marcado por condições precárias e superlotação sempre esteve entre os grandes desafios do trabalho como médico no local. Foi assim com a chegada da Aids - atualmente, considerada controlada - e, mais tarde, com o surto da H1N1. Atenção redobrada para evitar que a gripe chegasse às alas prisionais. “Imagina essa epidemia dentro do Central, com quase 5 mil presos?

Fui falar com o general Edson Goulart [secretário estadual de Segurança na época] sobre a importância da prevenção”, relembra.

Como resultado da conversa, a definição de que nenhuma visita com dor de cabeça, espirros ou tosse entraria no Central. Além disso, uma intensa campanha de alerta e prevenção da doença foi montada. “Nos últimos três anos, não tivemos registro de H1N1 lá dentro”, relata com orgulho.

Sem arrependimentos  

Quando questionado, o doutor Central faz questão de deixar claro que arrependimento e medo passam longe quando ele pensa nas quase quatro décadas dedicadas ao sistema prisional.

De outro modo, ele faz questão de apontar, com orgulho, as amizades construídas. “Destaco a Brigada Militar, alguns policiais civis e outros federais”. Agora já aposentado do HPS, da Biometria do Estado e do Central, o traumatologista não pensa em parar de trabalhar. Hoje, ele atua como plantonista de urgência em cinco cidades pelo interior gaúcho, além de manter um consultório particular. “Na realidade, tu vai ser sempre médico. Duvido que se um médico estiver na rua e presenciar um acidente ele não vai fazer nada, ignorar a situação. Não sei se somos especiais ou não, ou o nosso coração ou nossa mente, mas estamos sempre para servir, sempre!”, sintetiza.

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