Marcado pela precisão: entre a cirurgia geral, o cartum e a charge
A Luta

Marcado pela precisão: entre a cirurgia geral, o cartum e a charge

Entre a medicina, o cartum e a charge, Ronaldo Cunha desenvolve uma linguagem peculiar para criticar as dificuldades da área da saúde – como profissional e como cidadão

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01/06/2018 09:00

Entre a medicina, o cartum e a charge, Ronaldo Cunha desenvolve uma linguagem peculiar para criticar as dificuldades da área da saúde – como profissional e como cidadão

Ronaldo Cunha Chargista
Foto: Juliane Soska/Simers
Cada toque do lápis no papel dura não mais do que uma fração de segundo. Em traços rápidos e certeiros, as linhas se cruzam. Antes que você possa se questionar do que se trata, o desenho já ganhou forma e sentido. Sentado em frente à prancheta, em um quarto que é também refúgio, o cirurgião geral sai de cena e abre espaço para o cartunista. Mas as duas faces de Ronaldo Cunha não se anulam. Em ambas há a marca da precisão – seja para conduzir o bisturi ou a caneta – e o sorriso fácil no rosto. Receita de quem aprendeu a levar a vida no seu próprio tempo, com a motivação de fazer aquilo que gosta. “Quando algo é feito com prazer, tudo fica mais fácil. Todo mundo deveria experimentar essa sensação diariamente”, recomenda. ilustração Ronaldo Cunha Formado na primeira turma da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em 1976, Ronaldo trazia da infância o desejo de ser médico. Nunca pensou que pudesse ser outra coisa na vida. Até que se tornou um dos mais respeitados cartunistas e chargistas do Brasil. Hoje, o que era passatempo se transformou em segunda profissão e também um remédio diário contra a tristeza e o estresse – prescrição certeira, sem contraindicações. Além de ilustrarem a revista Vox Medica, suas charges já estamparam alguns dos principais jornais do Estado. Só no jornal O Pioneiro, de Caxias do Sul, foram mais de seis mil publicações. Cada uma delas está cuidadosamente armazenada em seu computador pessoal; outras tantas estão impressas e guardadas em caixas. Também foram inúmeras as colaborações para o jornal Zero Hora, desde que o chargista era, ainda, um estudante de Medicina. ilustração Ronaldo Cunha “Desde a infância, gostei de desenhar. Minha mãe guardou alguns dos trabalhos da época em que eu tinha cinco ou seis anos e me mostrou quando eu já era adulto. Eu mesmo me espantei com a qualidade!”, detalha Ronaldo. O primeiro grande incentivo, lembra ele, veio da escola. Durante uma prova livre de desenho, ele retratou a beleza do Pão de Açúcar com toda a riqueza de detalhes que foi capaz de evidenciar. O reconhecimento veio em seguida: sua nota não foi dez, mas 11. “Na prova seguinte, eu caprichei ainda mais e ganhei 12”, conta, entre risadas. Dos desenhos da escola para o cartum, a transição foi rápida como um rabisco. Quando surgiu a oportunidade de fazer charges, de outro modo, a primeira reação foi de incerteza. O primeiro, explica ele, funciona quase como uma linguagem universal, capaz de ser compreendida por qualquer pessoa, mesmo passados anos de sua produção. O segundo, por outro lado, carrega um tipo de humor mais vinculado a um contexto específico, com validade limitada. Mesmo assim, aceitou o desafio. Hoje, Ronaldo se divide entre os dois estilos - embora não esconda a preferência pelo lado cartunista.
Às vezes, estou andando na rua e, de repente, vem o desenho pronto na minha cabeça.

Chargista médico

Mesmo quando o médico sai de cena, a bagagem dos anos de plantões e atendimentos aparece no traço do chargista. A rotina como profissional da saúde e os problemas encontrados ao longo dos anos estão entre as principais inspirações. Para Ronaldo, isso dá a ele uma visão privilegiada. “Sou cidadão comum e médico, então vejo não só as necessidades do paciente como também as dificuldades enfrentadas por aqueles que atuam na área”, É nessa fusão que ele encontra o equilíbrio ideal para fazer o tipo de humor proposto pela charge: a crítica baseada em situações que ele conhece de fato. “É algo que eu vivo na pele, dos dois lados, como médico e como cidadão”, explica.

Em dez minutos

Ilustração Ronaldo Cunha Em um ambiente repleto de complexidades, como a Medicina, não faltam inspirações para Ronaldo colocar a caneta em ação. “Às vezes, estou andando na rua e, de repente, vem o desenho pronto na minha cabeça”, conta ele. Até mesmo na hora da cirurgia as ideias surgem. O difícil é guardar cada detalhe na memória até a hora de ter o papel em mãos. Outra angústia recorrente é o momento do encontro com o travesseiro. Uma ideia maravilhosa surge, cada traço já está desenhado. Mas aí vem também o sono e, no outro dia, a lembrança já não é completa. Ele confessa, inclusive, que já pensou em deixar um bloco de notas ao lado da cama para registrar tudo ao primeiro lampejo. Um de seus segredos para produzir é ter uma motivação e ser instigado. Quando isso acontece, o processo entre fazer o desenho, escanear e colorir no computador, às vezes, dura não mais do que dez minutos.
Sou cidadão comum e médico, então vejo não só as necessidades do paciente como também as dificuldades enfrentadas por aqueles que atuam na área.

Do Brasil ao Japão

De hobby a segunda profissão, o trabalho como cartunista já levou Ronaldo a extrapolar fronteiras para chegar a países como Bélgica, Portugal, Estados Unidos e China. Participando dos chamados salões de humor, que reúnem desenhos de todo o mundo em competições, ele acumulou mais de 100 prêmios. No Brasil, o maior evento da área é o Salão Internacional de Humor de Piracicaba, que o cartunista gaúcho já venceu três vezes. Mas seu maior orgulho é ter conquistado, em 1988, um prêmio no Concurso Yomiuri de Cartuns, do jornal japonês Yomiuri Shimbun.
Ronaldo Cunha
Foto: Juliane Soska/Simers

Permanência

Nascido em Cachoeira do Sul, Ronaldo se mudou para Vacaria com a família quando tinha apenas um ano. Gostou tanto que só saiu da cidade para garantir sua formação como médico e, mais tarde, como cirurgião. Hoje, aos 65 anos, ele não se arrepende da escolha. Ao relembrar seus primeiros passos na Medicina, vem também a emoção em contar o esforço feito pelo pai para mantê-lo em uma faculdade privada em Porto Alegre. “Ele era uma pessoa de poucos recursos, fico imaginando o quanto se sacrificou para permitir que eu realizasse meu sonho”, desabafa. Graduado aos 24 anos, com 26 já havia concluído a residência de cirurgia geral no Rio de Janeiro. Foi quando veio o convite para permanecer em terras cariocas e trabalhar em um novo hospital da cidade. A proposta até balançou, mas não convenceu: seu desejo era retornar às raízes e atuar em Só em seu primeiro mês, foram 16 plantões. Hoje, Ronaldo se permite fazer diferente. “Já atuei como médico de saúde pública, em consultório e na cirurgia geral. Agora já diminui o ritmo”, explica. No tempo que sobra, ele aproveita para colocar em prática seu talento no universo do
Tags: cartunista cirurgião geral Vox Medica Ronaldo Cunha edição 77 chargista

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