Nem só de falta de estrutura padecem os profissionais que atendem em hospitais e unidades de pronto atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS). A violência que permeia muitas comunidades também entrou na rotina de médicos e funcionários, que, cada vez mais, presenciam ou são vítimas de situações de risco em seu ambiente de trabalho. Conheça histórias de profissionais que viram a violência de perto:
Paciente é morto na sala de espera do Pronto Atendimento
“No ano passado, cheguei para o plantão no Pronto Atendimento Cruzeiro do Sul (Pacs), por volta das 19h e um paciente tinha sido morto dentro do local meia hora antes. Já tinham retirado o corpo, mas o local estava isolado. Ainda tinha sangue no corredor. Contaram-me que o paciente estava esperando atendimento e algumas pessoas entraram, atiraram nele e saíram correndo. Entrei para iniciar o atendimento. Minutos depois, veio a notícia de que estavam incendiando um ônibus perto do estacionamento do posto, pedindo que as pessoas retirassem seus veículos, porque havia risco de explosão. Fui até lá, tirei o carro e fiquei observando à distância os bombeiros chegarem e apagarem o fogo. Suspenderam o atendimento naquela noite e os pacientes foram removidos para outros locais. É comum atendermos pessoas baleadas, mas entrar e executar, nunca tinha visto. Jamais imaginava que ia chegar para trabalhar e deparar com isso. Fiquei preocupado, porque vi que o estado tinha perdido o controle. Não consegue mais garantir a segurança nem no ambiente de trabalho das pessoas. Quando me formei, nos anos 1980, trabalhei na Vila Cruzeiro, no Morro Arapeí. Ia de carro até lá, atendia as pessoas e nunca me senti ameaçado. Agora, em um pronto atendimento que é grande, tem vigia e tudo o mais não nos sentimos seguros. Está aparentemente tranquilo, mas de uma hora para outra pode acontecer de novo. Não temos como saber. A gente vem confiando que está tudo certo, mas nada impede que algo aconteça.”
Jorge Eltz, pediatra e diretor do SIMERS.
Pacientes se revoltam e ameaçam profissionais no Postão da Cruzeiro
“O Postão da Cruzeiro, onde trabalho desde 1998, é um local que já passou por várias situações de violência. Em uma das mais recentes, em 2015, um paciente que esperava por atendimento se desentendeu com os funcionários e quebrou uma divisória de vidro no Pronto Atendimento Cruzeiro do Sul (Pacs). Era fim de noite, o posto estava cheio, e as pessoas começaram a gritar. Houve ameaças de invasão. Recebemos uma ligação dos plantonistas avisando que a situação estava fugindo do controle e pedimos que a Brigada Militar e a Guarda Municipal fossem até lá. Também fui, acompanhado de uma jornalista, um motorista e um advogado. Quando chegamos lá, o local estava conflagrado. Em um determinado momento vi um senhor de pé, gritando, pedindo que os plantonistas precisavam ir até lá explicar o que estava acontecendo. Conversamos com a BM, guardas, funcionários e com o senhor que havia iniciado a confusão, irritado com o tempo de espera, e seus dois filhos. Os plantonistas trabalhando normalmente, mas assustados com a situação.
O problema começou porque havia dois médicos e demanda para quatro, o que irritou os pacientes. Levou algumas horas, mas a situação foi contornada e tivemos apenas danos materiais. Em casos como esse, sinto-me apreensivo em relação aos colegas. São situações em que se sentem ameaçados. E mesmo alguém que já passou por várias nunca sabe o que pode acontecer. É sempre complicado.”
André Gonzales, médico e diretor do SIMERS.
Médico desabafa após sua mulher grávida ser agredida por um paciente
“Vivemos momentos difíceis para exercer a medicina com propriedade ética, técnica, humana. Muito dessa dificuldade advém do processo de personificação das deficiências do sistema de saúde na figura do médico. Para aqueles que proliferam essa ideia pouco problema há, posto que não necessitam de nosso sistema de saúde e tampouco confrontam-se com a realidade das emergências ou com a convalescência da população. Já os que tratam cotidianamente pessoas e suas enfermidades, deparam não com problemas - já que esses são ao seu limite irresolúveis -, mas com os eventos que fogem daquilo que compreendemos como realidade. No exercício de nossa atividade, confrontamo-nos com as mais diversas situações de agressões, sejam verbais ou físicas, e sempre estamos prontos para realizar atendimentos complexos em salas de emergências ou atendimentos simples em consultórios, amparando e tranquilizando um paciente emocionalmente abalado. Quando esse atendimento, no entanto, é realizado para assistir um colega médico agredido no exercício de seu ofício, a realidade inicia sua distorção. Não apenas médicos, mas também médicas - durante o exercício de seu ofício - estão sendo agredidas por pacientes certos de impunidade. Isso não deveria fazer parte de nossa realidade. Sou médico e presenciei uma das cenas mais ultrajantes vivenciáveis por um médico no exercício de sua profissão.
Por favor, pare e visualize: uma mulher grávida recebendo repetidos chutes em seu proeminente abdômen onde crescem duas crianças. Coloque nela um jaleco branco e, com ele, o desejo de tratar não apenas pacientes, mas também amparar os pacientes e seus pais - ela é a pediatra. A vítima desse episódio, ocorrido em 2014, era mulher, médica, pediatra e futura mãe. É a mãe dos meus filhos. Precisamos de mudanças já.”
Guilherme Loureiro, médico.
Quer morrer, doutora?
Na websérie
Nascidos para Medicina, obra ficcional que retrata os desafios dos médicos na luta pela prestação da saúde de qualidade no Brasil, a médica Julia enfrenta uma situação de violência. Quando bandidos invadem a emergência, exigindo atendimento para uma mulher baleada, Julia assume a responsabilidade de lidar com a situação, mas a tensão do momento pode levá-la além de seus limites. Assista
aqui.