A cada vez que uma doação de órgãos em outra cidade surgia, um grupo de cinco médicos era formado e embarcava na missão única de dar uma segunda chance à vida de desconhecidos. Na noite chuvosa de 1º de outubro de 1997, o objetivo foi interrompido pela queda da aeronave Xingu 121, do governo do Rio Grande do Sul.
Saindo de Porto Alegre com destino a Chapecó, em Santa Catarina, o grupo era a responsável naquele dia por fazer a captação de órgãos em um paciente internado com morte cerebral no Hospital Regional da cidade catarinense. No acidente, cinco jovens médicos perderam suas vidas precocemente.
A tragédia, que deixou familiares, amigos e a medicina gaúcha em luto, completa 20 anos. Do legado desses profissionais, a transformação das diretrizes e o fortalecimento de campanhas de doação e transplante de órgãos no Estado. Hoje, o SIMERS homenageia a memória e a trajetória de cada um deles.
Uma prova de amor à vida
Marcos Stédile, 28 anos, André Augusto Barrionuevo, 29 anos, Jean Kolmann, 31 anos, Jackson Ávila, 27 anos e Cláudio Lança, 29 anos. A poucos quilômetros da pista do Aeroporto Serafim Bertazo, em Chapecó, o avião em que estavam, juntamente com os pilotos José Eduardo Dutra Reis e Paulo César Reimbrecht, colidiu contra árvores e caiu.
O quinteto, parte da equipe de transplantes do Hospital Santa Casa e do Instituto de Cardiologia, de Porto Alegre, parece mesmo ter sido vítima de uma triste ironia do destino. Na busca por salvar vidas, tiveram as suas abreviadas.
“Eles morreram no exercício de suas profissões, mas nos deixaram, como legado, uma inesquecível prova de amor à vida”. A fala do médico e diretor do SIMERS Germano Bonow remonta à época do acidente. Na ocasião, ele era secretário estadual da saúde e acompanhou a equipe que prestou auxílio para a liberação dos corpos das vítimas.
Passadas duas décadas, Bonow recorda com emoção o momento em que soube do evento. “Nesta noite eu estava em uma solenidade no Theatro São Pedro e fui informado sobre o acidente. Em um primeiro momento ainda não tínhamos confirmação sobre mortes, mas quando isto ocorreu avisei o governador, na época o Antônio Britto, que solicitou imediatamente o deslocamento até o local”, conta.
No dia seguinte, acompanhado do secretário estadual da segurança, José Fernando Cirne Lima Eichenberg, seguiu para Chapecó para acompanhar os trâmites de transporte das vítimas para o Rio Grande do Sul.
Das lembranças
Diretor médico do Centro de Transplantes da Santa Casa de Porto Alegre, José Camargo, lembra ainda hoje da dificuldade em encontrar forças para retomar a rotina - e todas as lembranças que ele trazia consigo. “Eu sei o quanto custou tudo isso. Foi uma experiência dolorida e sustentada, porque durante muito tempo coisas banais, como encontrar a letra deles nos prontuários, era uma dor renovada”, explica.
O Jean, relembra Camargo, nunca havia participado de uma captação de órgãos fora de Porto Alegre. “Já o Jackson, ainda residente do primeiro ano e mais novo entre eles, teria naquele dia sua primeira experiência. Eram talentosos, ainda tinham muito a contribuir”, completa ele citando os dois médicos ligados ao transplante de pulmão, sua área de atuação.
Único dos profissionais ligado do Instituto de Cardiologia, Barrionuevo trazia desde cedo o desejo de se tornar médico, relembra o pai Augusto Barrionuevo. “Sempre foi muito estudioso e inteligente, dedicado a tudo que fazia. Era um grande vocacionado para atuar na medicina, vivia para isso”. Para a família, apesar do vazio deixado pela ausência do filho e irmão mais velho, ficou o sentimento de alguém que sempre amou a vida ao extremo. “Parece até que adivinhava que ela seria curta”, completa o pai emocionado.
Mudanças na legislação
Em 1999, dois anos após o acidente, foi criada a Lei nº 11.308, que instituiu a Semana de Doação de Órgãos no Rio Grande do Sul. A legislação surgiu como incentivo à doação de órgãos e homenagem as vítimas. No documento que a oficializa, de autoria do então deputado Carlos Vieira da Cunha, consta também a dedicatória: “Médicos e pilotos idealistas e humanitários, exemplos de dedicação profissional, falecidos em acidente aéreo ocorrido em 1º de outubro de 1997, em Chapecó (SC), quando viajavam em condições climáticas adversas em busca de órgãos para salvar vidas”.
Homenagens
Ao longo destas duas décadas, os médicos receberam diferentes homenagens. No Instituto de Cardiologia (IC), o Banco de Homoenxertos foi nomeado Dr. André Barrionuevo em memória ao médico da equipe. Na Central de Transplantes do Estado, uma placa com o nome dos cinco médicos foi descerrada em 2006, na ocasião da inauguração do espaço.
Este ano, a peça teatral Começar outra vez passou por Porto Alegre e homenageou os cinco médicos. O espetáculo, que aborda a informação e a sensibilização sobre o conceito e importância da palavra doação, foi criado pelo ator Northon Nascimento e sua esposa Kely Nascimento. Northon passou por um transplante de coração e, mesmo após a sua morte em 2011, teve sua trajetória de conscientização sobre doação de órgãos reproduzida e encenada Brasil afora.
Importância de doar
De acordo com dados do Ministério da Saúde, nos últimos 15 anos o Brasil teve uma alta de 139% no número de transplantes realizados. Apenas em 2016, foram 24.958 procedimentos - alta de 5% em relação ao ano anterior -, para um total de 41.602 pessoas na fila de espera. Mas apesar do crescimento, os números ainda são instáveis.
“Aqui no Brasil, temos percebido oscilações no movimento de doação de órgãos. No ano passado ocorreu uma alta nas doações em relação a 2015. Mas 2017 já não parece manter o mesmo nível. Nós tivemos em julho deste ano seis transplantes de pulmão em oito dias. Depois ficamos um mês sem nenhum doador”, explica Camargo. Segundo ele, a falta de ritmo dificulta que se tenha uma estimativa mais exata de quanto tempo é preciso esperar na fila de transplantes.
A Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) aponta que entre janeiro e março deste ano o país teve 2.616 doadores em potencial. Destes, apenas 817 se transformaram em doadores efetivos. Os motivos que levam familiares a não autorizarem o processo são inúmeros e vão desde questões religiosas até a falta de confiança no sistema.
Camargo lembra, no entanto, que o desenvolvimento da consciência do quão importante é a doação de órgãos é também uma forma de evitar que a morte dos cinco jovens médicos tenha sido em vão. “As pessoas precisam se dar conta que nós somos muito mais candidatos a receptores do que a doadores. Ninguém está livre de, a qualquer momento, ele próprio ou um familiar precisar de um transplante”, completa.