A revolução das mídias sociais traz novas oportunidades, mas também coloca os médicos diante de riscos inéditos, que vão da exposição inadequada até o linchamento virtual. Entenda onde está o perigo – e saiba como se proteger
A advogada Patrícia Peck Pinheiro conhece como poucos as vicissitudes da sociedade em rede. Por dez anos consecutivos, foi eleita a advogada “mais admirada” do Brasil no campo da Propriedade Intelectual, segundo o anuário Análise Advocacia 500. Hoje, projeta-se também como referência em Direito e Tecnologia, tendo mais de 17 livros sobre o tema – o mais recente, “Direito Digital”, está na sexta edição. Nesta entrevista à VOX Medica, Patrícia recorre a sua bagagem de conhecimentos para tratar de um assunto cada vez mais crítico para os profissionais de Medicina: como se posicionar no ambiente das redes sociais? Confira as respostas a seguir.
Em uma época tão polarizada, existe alguma receita para se evitar desgastes nas redes sociais sem que tenhamos de nos abster dos debates?
Antes de tudo, é preciso entender que as redes sociais são uma praça pública digital. O médico que vai para as redes sociais tem de saber quais são seus objetivos nessa praça – até para evitar prejuízos decorrentes da exposição. Se possível, é interessante separar o “eu” pessoal do “eu” profissional para evitar que os ruídos de um possam impactar na reputação do outro. Muitas pessoas ainda concentram tudo no mesmo perfil. Ou seja: tratam de todo o tipo de assunto – questões políticas e religiosas, o dia a dia, fotos pessoais, etc. – ao mesmo tempo que interagem com sua comunidade profissional – como clientes, pacientes, colegas de trabalho. E aí surgem contradições.
Mas como fazer essa divisão entre pessoal e profissional quando a “marca” do seu negócio é também o próprio nome, como ocorre com tantos médicos?
Eu diria que o fundamental é saber o seu objetivo. Se você quer interagir com a família, postar fotos com os amigos, então existe uma forma de agir. Mas se você quer usar as redes sociais para buscar oportunidades comerciais, divulgar o seu trabalho, então obviamente algumas posturas e manifestações não serão adequadas nesse espaço. Só que, nas redes sociais, muita gente ainda mistura tudo isso. A gente coloca opinião pessoal, foto da família, etc., mas se apresenta no perfil com credenciais profissionais, vinculado a uma marca ou instituição. Aí fica confuso. Tem coisas que é adequado falar quando estamos na nossa “pessoa física”, interagindo com familiares e amigos. E tem posturas que devemos observar quando estamos na nossa “pessoa jurídica” – isto é, representando um negócio, uma clínica, um hospital ou instituição.
Já houve muitos casos de pessoas que, ao se sentirem mal atendidas, utilizaram as redes sociais para difamar médicos. Como reagir ou se defender desse tipo de ataque?
A questão é complexa. Por um lado, as pessoas são livres para relatar suas experiências, fatos vivenciados. Por outro, há relatos que facilmente resultam em ofensas, juízo de valor e até mesmo manipulação dos fatos, induzindo mais pessoas a uma determinada opinião. Então é isso que precisa ficar claro: qualquer pessoa tem liberdade para manifestar uma opinião a respeito do seu trabalho – mas é fundamental que essa opinião seja fundamentada nos fatos. Se a opinião estiver errada ou equivocada, incorrendo em um exagero ou difamação, essa pessoa está sujeita a responder por isso. Por outro lado, o Código Civil prevê a figura do “abuso de direito”, que está no artigo 187.
Por um lado, as pessoas são livres para relatar suas experiências [nas redes sociais]. Por outro, há relatos que facilmente resultam em ofensas, juízo de valor...
É possível pedir direito de resposta?
Quando a crítica vai para um canal oficial, ou quando a reclamação é feita junto a uma clínica médica ou hospital, por exemplo, há um procedimento que pode levar ao direito de resposta. Ou seja: uma parte faz a reclamação e a outra apresenta a defesa. A partir daí, tem-se uma mediação para melhorar a situação ou ressarcir os danos que forem comprovados. Então, sim, os profissionais que estão sendo expostos, tendo sua imagem denegrida, podem utilizar o Judiciário em sua defesa. Em alguns casos, a própria organização em que eles trabalham terá de fazer isso para preservar sua imagem institucional.
Mas adianta fazer isso depois que o estrago está feito?
Na verdade, as pessoas em geral deveriam ter mais cuidado para fazer esse tipo de crítica pública. É muito difícil apagar um conteúdo da internet, fazer uma retração em redes sociais ou praticar o que poderíamos chamar de “direito ao esquecimento”. Mas é importante ter consciência de que se eu sair por aí contando para todo mundo que fui mal atendida, e depois ficar comprovado que não houve nenhum problema, então eu estou sujeita a responder pelos danos da minha reclamação pública. Até porque uma infração ou uma quebra de expectativa no meu atendimento não justifica que eu faça justiça com o próprio mouse. Há canais de reclamação em órgãos oficiais que agem com toda a discrição para analisar as denúncias e resolver de fato a questão. As redes sociais dão voz às pessoas, são um espaço de opinião e liberdade de expressão, mas não podem se tornar um subterfúgio para malhar Judas digitais.
É possível pedir reparação quando a difamação se dá em um perfil pessoal no Facebook ou grupos de WhatsApp?
De fato, é muito difícil pedir direito de resposta num perfil particular. Mas se você estiver ciente do fato e tiver um registro do conteúdo, então é possível, sim, ir ao Judiciário para solicitar a remoção, a retração e até mesmo o ressarcimento por danos morais. Nesse sentido, as redes sociais até facilitam, na medida em que os conteúdos ficam documentados. Antigamente, muitas vezes era necessário arranjar testemunhas para comprovar uma difamação feita na base do rádio corredor.
O problema é quando a difamação ou calúnia ocorre dentro de grupos fechados, que reúnem familiares, amigos, etc. Esses grupos não são públicos: muitas vezes, são espaços privados, íntimos. Falar mal de alguém nesse contexto é crime também?
Essa fronteira entre o público e o privado está cada vez mais fluída. Mas isso não importa muito: para que haja crime contra a honra ou dano de imagem, basta que a difamação envolva outra pessoa. O que ocorre é que as mídias sociais, de certa forma, transformaram todos nós em pessoas públicas. Publicamos fotos, vídeos no Youtube... Logo, estamos mais sujeitos a receber críticas e comentários, tal como acontece com um político, um ator, cantor ou presidente de empresa. Falar dessas pessoas públicas é inerente à liberdade de expressão. Mas repito: a liberdade de expressão não pode gerar abuso, ofensa ou danos injustos à reputação ou imagem.
Como pessoas potencialmente públicas, quais são os cuidados que os médicos devem tomar quando buscam divulgar seus serviços, conhecimentos, etc.?
O primeiro cuidado, obviamente, é com o sigilo médico. Todo o tipo de informação relacionada ao trabalho do médico tem relação com algum paciente – que não pode ser exposto injustamente. O Conselho Federal de Medicina (CFM) é muito claro nesse sentido. O profissional até pode compartilhar determinadas informações, desde que contem com autorização prévia do próprio paciente. É preciso tomar cuidado nesse sentido porque, historicamente, os médicos tinham o hábito de compartilhar experiências e aprendizados nos congressos e seminários. E o que percebo, hoje, é que muitas vezes essa vontade de compartilhar conhecimentos chega às redes sociais.
É comum os médicos utilizarem as redes sociais para divulgar trabalhos científicos e pesquisas, que em tese servem justamente para serem publicados. Há algum risco associado a isso?
O risco tem mais a ver com as restrições das revistas científicas. Muitas dessas publicações exigem que os artigos submetidos sejam inéditos. Só que, hoje em dia, há pessoas mais acostumadas com as redes sociais que compartilham seus conteúdos primeiro na internet, especialmente no LinkedIn. Depois, quando tentam levar isso para uma revista científica, acabam tendo problemas por causa da falta de ineditismo. Outro ponto muito importante é cuidar do dever de citação. Ou seja: dar o crédito. Quem dá aula normalmente utiliza muito conteúdo de terceiros sem dar o crédito ao autor. E agora, com a internet, isso ficou ainda mais recorrente: as pessoas publicam esses conteúdos e simplesmente esquecem de citar a fonte. Conforme a nossa legislação, isso é uma infração de direitos autorais – e já presume um dano moral.
Mesmo quando ocorre por mero descuido?
Sim. Mesmo que você utilize apenas um trecho, ou que utilize o conteúdo sem a pretensão de ganhos financeiros, o autor tem o direito de reivindicar uma indenização por não ter sido citado. E as pessoas fazem isso o tempo todo... Às vezes, aquele médico que dá aula em hospital, em universidade, publica esse conteúdo no portal da instituição. E aí a instituição também pode ser responsabilizada.
As redes sociais dão voz às pessoas, são um espaço de opinião e liberdade de expressão, mas não podem se tornar um subterfúgio para malhar Judas digitais
De forma geral, qual seria o erro mais frequente entre aqueles profissionais que buscam divulgar seu trabalho nas redes sociais?
O mais recorrente é o erro do exagero. É quando a pessoa divulga informações que vão muito além daquilo que ela é ou do que ela faz. Porque a mentira tem perna curta – e mais curta ainda na internet. Hoje, é muito fácil descobrir que aquilo que a pessoa está colocando não é verdade. É a pessoa que fez um curso comum, mas que nas redes sociais afirma ter feito uma pós-graduação. É a pessoa que tinha um cargo intermediário, mas que nas redes sociais afirma ter liderado um certo projeto, uma diretoria, etc. Vivemos a era da transparência. A informação tem de estar muito clara. No dia a dia, outro problema bastante comum é o erro de português. Tem excelentes profissionais que ao construírem suas páginas e perfis cometem gafes terríveis de redação. Imagine um médico afirmando que ofereceu uma “conçulta”... Por melhor formação que ele tenha, isso certamente abala a credibilidade dele.
E quando recebemos críticas – existe uma maneira mais adequada de respondê-las? Ou é melhor simplesmente silenciar?
Vivemos uma época em que é preciso educar para a liberdade de expressão responsável. Temos de aprender a tolerar a crítica, mas também devemos ensinar o interlocutor a fazê-la de forma respeitosa. Então, se alguém, ao criticar, gerar uma ofensa, você deve, sim, responder – de forma educada, sem devolver na mesma moeda, sem fazer justiça com o próprio mouse. Já o silêncio, muitas vezes, pode ser confundido com uma conivência, uma concordância. Eu prefiro orientar a pessoa a criticar sem ofender. Não podemos desistir desse processo educativo.
Esta entrevista faz parte da edição 77 da Revista VOX Medica do Simers.