O médico que somos é o melhor que podemos ser?
A Luta

O médico que somos é o melhor que podemos ser?

No artigo, o médico J. J. Camargo aborda a relação entre médico e paciente a partir do ponto de vista de quem encara a Medicina como a arte de ouvir.

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18/12/2018 00:00


JOSE J. CAMARGO (professor de Cirurgia Torácica da UFCSPA – Porto Alegre. Pioneiro em Transplante de Pulmão na América Latina Membro Titular da Academia Brasileira de Médicos Escritores Membro Titular da Academia Nacional de Medicina)


Os progressos tecnológicos experimentados pela Medicina nos últimos 50 anos foram mais expressivos do que em toda a história da humanidade. Um avanço puxando outro, acelerou de tal maneira o desenvolvimento que só não nos surpreendemos mais porque estamos indo junto com a mudança. E mais do que em qualquer outra época, o conhecimento de outras áreas foi absorvido pela Medicina, com resultados extraordinários. Quando a NASA precisou desenvolver tecnologia para acompanhar os batimentos cardíacos dos astronautas, estava, sem dar-se conta, plantando as bases do moderno monitoramento em terapia intensiva, presencial ou a distância. A descoberta do Raio Laser revolucionou uma das áreas mais fantásticas da Medicina moderna: a da imagética.

A Medicina Nuclear e a interação com a RNM permitiram o mapeamento cerebral, com a determinação precisa de cada função específica. Os transplantes, vistos como provavelmente a mais arrogante das iniciativas médicas, porque não sabendo mais o que fazer com um órgão doente, se dispôs a simplesmente trocá-lo. E o futuro próximo prevê a produção laboratorial de órgãos imunologicamente inertes, o que multiplicará os benefícios desse prodigioso avanço.

Os laboratórios de simulação, permitindo o treinamento do estudante sem o risco da iatrogenia,  constituíram-se rapidamente num recurso indispensável nas melhores escolas médicas do mundo. 

O desdobramento do genoma, que no futuro muito próximo permitirá prevenção, diagnóstico e tratamento da maioria das doenças, se constitui numa das áreas tão céleres do conhecimento médico e se diz que, a cada 18 meses, metade do conhecimento se renova.

Os laboratórios virtuais, com programas fantásticos , têm permitido o tratamento de problemas psiquiátricos como fobias e dores fantasmas. 

Com todos estes avanços tecnológicos, temos enfrentado o constrangimento de pacientes idosos, sempre os mais carentes, falando com nostalgia dos médicos de antigamente, o que coloca, como obrigatória, a seguinte questão: assumindo que paciente infeliz significa médico  equivocado, onde, nesta trajetória de tantas conquistas, nós perdemos o rumo?

Não podemos negar que a nossa atividade envolve um conflito de atitudes: de um lado, a ansiedade do paciente com psiquismo fragilizado pela doença e do outro o médico cumprindo a rotina do seu trabalho. E a rotina, como se sabe, não é o melhor estimulante das relações humanas. Para que a empatia se produza é indispensável que o médico se coloque no lugar do doente e tente pensar como um deles. Quem já esteve do outro lado  descobriu na própria pele o quanto paciente precisa se sentir especial.

Por isso, muito cuidado ao se aproximarem de pacientes que sofrem, porque eles estarão com todos os sensores ligados e absolutamente intolerantes à desconsideração com seu sofrimento. Poderão esbravejar ou suportar a desconsideração, de acordo com sua humildade e subserviência, mas em nenhuma circunstância eles esquecerão. Nós, médicos, estamos desatentos aos princípios básicos da relação humana mais  elementar, que só se sustentará se lá no início houver um mínimo de solenidade, que inclui, entre outros rudimentos, a preocupação com a identidade do paciente.

Considero que o médico, não importa o quanto atribulado, precisa desenvolver métodos de autoavaliação do seu trabalho. Uma forma que utilizo com frequência é perguntar àqueles que passaram por situações estressantes o que foi o mais inesquecível. Utilizem esta estratégia e vão ficar deprimidos ao constatar que muitas vezes os pacientes consideram inesquecível uma vivência que nem percebemos. Uma constatação inegável: a nossa atividade é um jogo de sedução e conquista. Sendo assim, é constrangedora a percepção de que os maiores atropelamentos afetivos têm como origem a carência de um pré-requisito básico para ser médico: gostar de gente.

Há 30 anos ser médico era certeza de afirmação profissional e pessoal, porque havia poucos médicos. Uma década depois, com o aumento de profissionais disponíveis, passou-se a exigir qualificação técnica e, por fim, com o mercado repleto de qualificados, a disponibilidade de afeto passou a ser um atributo para a seleção de médicos, sempre que nos fosse dada a chance de escolha. Todos então aprenderam que entre dois médicos igualmente treinados, sempre prevalecerá o mais afetivo.

Os profissionais que não entenderem esta obviedade estarão condenados a engrossar as fileiras do grande e triste batalhão dos “injustiçados profissionais”. Os mal humorados, os rígidos e os mal amados poderão, no máximo, ser tolerados pelos pacientes, por falta de alternativas, mas não conhecerão uma das grandes maravilhas da Medicina de qualquer época: a alegria de ser escolhido pelo paciente.

A Medicina é a arte de ouvir e ela só consegue ser praticada por quem sinta prazer em aliviar sofrimento. O professor Carlos Grossman, um emérito mestre de três gerações de clínicos gaúchos, costuma, ao listar os pré-requisitos para formação do verdadeiro médico, referir que ele precisa ter “cabeça aberta, coração generoso e a bunda. Porque, quem não tiver bunda para sentar e ouvir o que o paciente tem para dizer, devia fazer outra coisa”.

Outro conceito importante: a doença é uma abstração da realidade e ela está nos livros, nos laudos  radiológicos e nos exames anatomopatológicos, e não na atitude do paciente, porque a visão da doença para o doente é a percepção do sofrimento. E como o sofrimento não é padronizado, cada pessoa tem seu jeito próprio de sofrer e o médico tem obrigação de penetrar neste sentimento. Portanto, não cometam o absurdo de antecipar o que pode acontecer de ruim. Ninguém se prepara para o sofrimento. Pelo contrário: as vítimas dessa desinteligência atroz apenas sofrem antes e mais. Desta observação se depreende que não há possibilidade de exercício médico sem sensibilidade e empatia. A incapacidade de colocar-se no lugar outro é certamente a maior exigência da atividade clínica.

É nossa responsabilidade profissional preservar a relação médico/paciente, que vem sendo progressivamente deturpada pela presença de inúmeros atravessadores, os tais auditores e gestores, que desprovidos de qualquer vínculo afetivo com o paciente, com frequência se arvoram do direito de determinar aos médicos qual a melhor estratégia para viabilizar economicamente o negócio, mesmo que as diretrizes ignorem o paciente, como se ele não fosse a razão maior de existir todo o sistema.

A relação médico/paciente deve ser vista, na sua essência, como um encontro generoso entre duas pessoas: um paciente que tem um problema que o aflige e um médico qualificado para ajudá-lo. Numa relação de confiança integral, o médico tem que passar a certeza de que saberá o que é melhor para o paciente e, quando não souber, visto que ninguém é onipotente, saberá quem saiba.

O que não podemos permitir, sob hipótese alguma, é que burocratas descomprometidos afetivamente  deturpem a relação humana mais intensa e aguda que se pode estabelecer entre duas pessoas, que eram desconhecidas, até que uma delas adoeceu.

O temor da morte e a existência de alguém que possa ao menos postergá-la explica porque, mesmo com tudo o que se tem dito para depreciar a figura do médico, sempre haverá no imaginário do paciente, desarmado de toda a malícia, um lugar para a veneração respeitosa que tantas vezes beira à idolatria.

Se este sentimento puro e comovente que brota da população mais simples for acrescido de uma  manifestação de igualdade, ainda haverá uma multiplicação de afetos, porque esta fusão, igualdade e generosidade, é a maior usina geradora de gratidão. E então nós, professores, precisamos definir que médicos devemos formar. E quando nos questionarem para onde vamos, devemos responder: vamos pelo caminho da competência técnica máxima, em direção à solidariedade incondicional, convencidos de que não estamos aqui para sermos meros coadjuvantes, mas sim para fazermos a diferença na vida das pessoas.

E então, para finalizar, eu tenho uma revelação aos inúmeros jovens que estão começando esta nobre  caminhada, e que deverá ficar entre nós, como um segredo: QUE PROFISSÃO MARAVILHOSA ESTA EM QUE NOS METEMOS!

Mas a Medicina só se completará se for exercida no limite da paixão e entendida como um contínuo e inesgotável exercício de afeto, de solidariedade, de empatia e de compaixão.

Tags: Relação médico-paciente artigo

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