Coordenador do Centro de Memória, do InsCer, o neurologista Iván Izquierdo reflete sobre os últimos avanços na área. Confira na entrevista!
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26/11/2018 00:00
As chaves da formação, do armazenamento e dos limites da memória humana ainda representam um mistério para a ciência. Nos últimos cinco anos, porém, exploradores e cientistas fizeram avanços notáveis – sobretudo, ao descobrirem que a memória é gerada simultaneamente em variadas regiões no cérebro, e não apenas no hipocampo, como se pensava até então. “Se escrevêssemos um livro sobre a memória, o que foi feito nesse período cobriria metade da obra”, diz Iván Antonio Izquierdo, neurocientista de origem argentina, naturalizado brasileiro. Aos 80 anos, mais da metade deles vividos em Porto Alegre, o médico é fundador e dirigente do Centro de Memória, unidade de pesquisas biomédicas do Instituto do Cérebro (InsCer), ligado à Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Sumidade mundial, conta com mais de 22 mil citações em periódicos, 700 artigos publicados e dezenas de premiações.
O estudo da memória evoluiu na última década. Quais são as descobertas mais relevantes?
Os maiores avanços ocorreram nos últimos cinco anos. Foi o grande salto. Se escrevêssemos um livro sobre a memória, o que foi feito nesse período cobriria metade da obra; o que veio antes disso ocuparia a outra metade. O principal avanço foram os novos métodos de estudo dos impulsos nervosos, que já haviam sido analisados um século atrás. Agora, porém, existem técnicas poderosíssimas. Ao sabermos o caminho dos impulsos nervosos, descobrimos como a máquina da memória funciona. É como se entendêssemos o trajeto da locomotiva ao analisarmos a fumaça que sai dela.
E o que essa trilha nos mostra?
Mostra que a memória é feita simultaneamente em muitos lugares no cérebro. Até cinco anos atrás, a ciência pensava – e eu mesmo dizia – que a memória era feita basicamente no hipocampo e depois se espalhava para outros lugares. Agora sabemos que não é assim. Essa nossa conversa, por exemplo, está sendo gravada no hipocampo e, ao mesmo tempo, em muitos lugares no cérebro. Quando se evoca a memória – e a ela serve para ser evocada e não para ficar guardada –, o cérebro ativa, simultaneamente, todos esses lugares. Ou seja, o complexo processo da memória encadeia muitas regiões do cérebro, tanto na hora da formação quanto na hora de sua evocação.
Cada parte do cérebro guardaria um mesmo arquivo ou uma parte desse arquivo, como acontece nos computadores?
Há dúvidas sobre isso. Acredita-se que cada parte do cérebro se especializa em algum aspecto da memória. O hipocampo representa a abordagem espacial. Certas regiões do córtex parietal guardam o aspecto temporal e verbal – outras, o visual. Cada região que participa da formação ou da conservação da memória se especializa um pouco em algo, embora guarde componentes de todo o resto. E também não é a parte toda: cada célula isolada do córtex faz uma coisinha. Uma célula do córtex pré-frontal pode ter conexões para determinada memória do hipocampo ou do lobo temporal, por exemplo. Não há um padrão específico. É um quadro mais complexo do que se acreditava.
Os avanços recentes se devem a um maior interesse da Medicina no campo da memória ou se relacionam com a evolução das tecnologias?
A tecnologia computacional foi a que mais contribuiu, mas não é a única fonte do avanço. Existe, por exemplo, a utilização da optogenética para exploração das vias nervosas. É uma técnica que provém da botânica e insere um vírus nas células nervosas, por meio de micro eletrodos. O vírus leva pigmentos vegetais que tornam o neurônio sensível à luz. Esse pigmento é ativado quando aquela célula é ativada. Assim, é possível saber qual célula está reagindo ou recebendo a informação. Isso traz um melhor conhecimento de como operam os impulsos
nervosos e abre um grande campo de possibilidade para exploração.
E como os pacientes podem se beneficiar desses avanços?
Vamos supor, por exemplo, que um dos experimentos leve a uma droga capaz de melhorar a formação de algum tipo de memória ou de toda a memória. Essa droga surge desses estudos moleculares e chega aos pacientes por meio de remédios. O impacto se dá por caminhos muitos complexos e difusos.
Centros como o InsCer são fundamentais nesse sentido.
Com certeza, pois aplicamos os avanços a partir da perspectiva de doenças específicas. Para o Mal de Alzheimer, que é uma doença típica da memória, meus colegas e eu utilizamos uma tecnologia muito econômica, que simula em ratos o efeito dos exercícios físicos – também empregados como tratamento paralelo do Alzheimer. Essa foi a técnica que trouxe maior recuperação em lesões cerebrais geneticamente semelhantes às do Alzheimer. Não me refiro à cura da doença, mas à melhora do tratamento e do estado do paciente.
Como esses exercícios beneficiam a memória?
Ninguém sabe exatamente, mas têm efeitos múltiplos. Um deles é o aumento da irrigação cerebral. Outra possibilidade é que os músculos secretem substâncias com efeitos tônicos para o
cérebro, como endorfina, adrenalina e ocitocina.
Existem pessoas que nascem com um potencial genético para ter uma boa memória?
A boa memória, ou a má memória, não vem de família. Não existe hereditariedade, embora haja famílias de pessoas com boa memória e famílias de pessoas com má memória.
E o que pode influenciar esse traço?
Não se sabe. A ciência já guardou o cérebro de várias figuras históricas importantes para ver se era possível depreender algumas informações dali. Mas o que poderíamos tirar da anatomia de um cérebro morto há vinte anos? Formol?
Em alguns tipos de autismo, os portadores desenvolvem uma memória fantástica para determinados assuntos. Isso tem sido estudado?
Está sendo muito trabalhado. E é frustrante ver o quão pouco avançamos, devido à dificuldade de entender esse tipo de paciente. A incomunicação é enorme e dificulta o trabalho. Sem dúvida, seria possível encontrar coisas muito interessantes nesse tema.
Na mesma linha, qual a ligação da memória com as chamadas doenças psicossomáticas?
Isso tem a ver com o instinto de sobrevivência. A principal função da memória é sobreviver, criar técnicas para sobreviver. Em situações crônicas, a memória resgata esse instinto mais básico do ser humano e de qualquer ser vivo. Todos queremos sobreviver. Esse instinto molda, basicamente, todo o trabalho da memória. A dor, por exemplo, está dizendo que há uma ameaça. O medo de tê-la é o que rege as nossas atividades básicas. Uma memória que não se baseia ou não inclua ‘sobreviver’, não serviria para nada. Primeiro viver, depois memorizar.
Mas a função da memória se encerraria na manutenção da sobrevivência?
A memória participa de praticamente todas as funções do corpo. Para fazer o coração bater, o corpo precisa se lembrar de como é esse gesto. Ele deve lembrar da expiração para poder fazer a inspiração. Constantemente, o organismo tem que lembrar de algo para fazer o que precisa. Esses movimentos não são parte da memória, mas envolvem a memória.
E é possível turbinar a memória?
A melhora acontece quando conhecemos os mecanismos que regem a memória. Esse é o esforço que eu e outros cientistas ligados ao assunto fizemos. Hoje, sabemos que o melhor exercício para memória é a leitura. Tem a ver com a força do caráter simbólico das letras. As letras exigem que o cérebro faça milhões de combinações a cada milissegundo para decifrá-las. Quando leio a letra “a”, por exemplo, um conjunto de células a reconhece e faz uma varredura em tudo o que está relacionado a esse código. Depois, os olhos passam à letra seguinte, que pode ser um “v”. A partir disso, o cérebro vasculha todas as possibilidades de significados e imagens para a sequência dessas letras. A próxima letra vai redefinir o trabalho outra vez. Ou seja, surgem infinitas combinações a cada nova letra. É um exercício imenso e que acontece em grande velocidade.
E como o senhor faz, aos 80 anos, para manter a memória em dia?
Eu trabalho muito. Vivo fazendo coisas. Então, minha memória está sempre ativada. Tenho a impressão de que, se nós estamos ativamente fazendo coisas, não há por que ter um déficit de memória.
Mas o excesso de atividade pode ser prejudicial à memória?
Muito se fala que estamos submetidos a um excesso de estimulação e tensão. A cada dia, a humanidade está fazendo coisas mais complexas – e está sabendo fazê-las bem. Tenho 80 anos e o mundo, às vezes, é complexo demais para mim, assim como para qualquer um. Todos estão aguentando uma carga de estímulo que não imaginávamos possível. O espanhol Santiago Ramón y Cajal, pai da neurociência, escreveu um livro belíssimo quando tinha 80 anos, que se chamava “El mundo visto a los ochenta años”. No livro, ele se queixava de estar vivendo num mundo de loucos. Isso foi em 1932. De lá para cá, continuamos avançando. Nossa capacidade de adaptação é enorme. O ser humano é uma caixa de surpresas boas – apesar de tudo.
A adaptação tem a ver com o aprendizado?
Em parte, sim. Mas também tem a ver com a capacidade física. No passado, o homem corria 100 m em 10,5 segundos. Hoje, o recorde está em 9,6. Em 1920, ninguém imaginava que isso seria possível, o que demonstra que avançamos em nossos limites.
Um médico precisa ter uma memória excepcional?
Deve ter uma boa memória, não necessariamente excepcional. Não precisa ser a melhor do mundo, mas um médico com má memória não serve. A memória o ajudará a saber o que fazer quando encontrar um paciente. Ele também precisa de uma boa biblioteca e acesso à internet, além de conservar uma boa relação com os colegas, que podem auxiliá-lo.
E qual a dica para os profissionais melhorarem a memória?
Eles devem estimulá-la constantemente. Lembrem-se de que a função faz o órgão. É como se fosse um músculo em atividade atlética. Tudo que envolva sinapses, quanto mais se utiliza, melhor funciona. Com a falta de sinapses, os músculos atrofiam e morrem. O aumento do uso melhora sua eficiência. Quanto mais eles usarem a memória, melhor vai funcionar.
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